A repercussão do fim de Game of Thrones foi ofuscada pelo início de uma nova minissérie da HBO: Chernobyl. Como o próprio nome já revela, a produção conta a história de um dos maiores desastres já causados pelo ser humano, que até hoje tem suas consequências marcadas na humanidade.
Com a temática nuclear ganhando espaço novamente, a curiosidade vem surgindo em quem já sabia, pelo menos um pouco, sobre o ocorrido e também em quem não fazia ideia da gravidade do acidente.
Em apenas cinco episódios, Chernobyl tenta mostrar problemas técnicos e humanos que causaram a explosão do reator nuclear da cidade, que hoje é desabitada, matando um grande número de pessoas e deixando marcas nas próximas gerações que foram afetadas pela radiação.
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O que acontece em uma usina nuclear?
Sabemos que aconteceu uma explosão na usina nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, mas os fatores que contribuíram para o acidente são bem complexos e vão muito além do que é explicado na minissérie. Por isso, convidamos o físico e professor da Escola de Ciências e Tecnologia da UFRN, Elton Carvalho, para nos explicar o que é a energia nuclear e como as usinas funcionam.
Mas, antes disso, é preciso saber que o produto final de uma usina nuclear é a energia elétrica. “Ela é vendida pela usina para o sistema de transmissão e atende as regiões atendidas pela transmissora”, diz Carvalho,
Mas por que a energia nuclear? São três os principais motivos de ela ser mais vantajosa em relação aos outros tipos de energia:
- A energia é limpa porque as usinas nucleares não emitem gases de efeito estufa, que, em contato com a atmosfera, causam mudanças irreversíveis na dinâmica climática do planeta, algo que vem sendo sentido cada vez mais e trazendo mais complicações para plantas, animais e, claro o ser humano;
- Ela é confiável porque é capaz de gerar energia suficiente para grandes demandas, independentemente do clima, seja ele frio ou calor extremos. Inclusive, as usinas nucleares quase nunca param e geram eletricidade 24 horas por dia, parando apenas uma vez a cada 18 ou 24 meses para serem reabastecidas;
- As usinas também são econômicas porque 10g de urânio, matéria usada para a geração de energia, são suficientes para produzir a mesma quantidade de energia que 700 kg de petróleo e 1.200 kg de carvão.
Uma usina nuclear é basicamente uma usina termoelétrica, pois funciona aquecendo água que vira vapor pressurizado e, então, gira uma turbina que faz um gerador rodar e produzir energia elétrica. Quando o vapor passa pela turbina, chega em um condensador que a transforma no estado líquido novamente, podendo ainda ser reaquecida. Assim, então, obtém-se a energia elétrica.
Como a formação da energia em uma usina nuclear é diferente da formado em uma usina à carvão ou gás natural, você deve estar se perguntando qual é a diferença entre elas de forma mais científica. Carvalho explica que, “enquanto nas usinas a carvão e gás o calor vem da combustão desses materiais, que são reações químicas (envolvendo os elétrons), na usina nuclear ela vem de reações nucleares (envolvendo prótons e nêutrons)”.
Então, como funciona uma usina nuclear?
Agora, chegou a hora de entender como funcionam as usinas nucleares. Em grande parte das usinas tradicionais, é preciso girar uma turbina para que ela gere eletricidade e isso acontece quando carvão, gás natural ou petróleo, por exemplo, transformam a água em vapor e o utilizam para mover uma turbina. Já no caso das usinas nucleares, nada é queimado para criar o vapor, mas apenas que a fissão faça a divisão dos átomos de urânio.
Os reatores nucleares foram desenvolvidos para que pudessem sustentar uma reação em cadeia contínua de fissão, que acontece em um combustível de urânio sólido cercado por água e feito somente para esse objetivo. Então, quando o reator é ligado, os átomos de urânio se dividem, liberam nêutrons e se aquecem. O processo continua gerando mais nêutrons e ainda mais calor. Esse calor cria o vapor que faz a turbina girar e que cria a eletricidade.
Vamos entender o processo de forma mais científica?
“Os átomos são formados por três tipos de partículas: os prótons (com carga elétrica positiva), os nêutrons (com carga elétrica zero) e os elétrons (com carga elétrica negativa). Os prótons e nêutrons formam o núcleo do átomo e são responsáveis por praticamente toda a sua massa. Os elétrons são duas mil vezes mais leves que os prótons e orbitam o átomo na chamada eletrosfera. O que determina o elemento atômico é seu número de prótons: o hidrogênio tem um próton, o oxigênio tem oito e o urânio, 92”, revela Carvalho.
O profissional explica que os prótons, com carga positiva, se repelem eletricamente e que, em distâncias muito curtas, prótons e nêutrons se atraem pela força nuclear fazendo com que os nêutrons tenham o papel de estabilizar núcleos que tenham mais de um próton.
“Núcleos que têm o mesmo número de prótons e diferentes números de nêutrons são chamados isótopos e são identificados pelo seu número de massa (que é a soma do número de prótons e de nêutrons): assim, o carbono-12 é o isótopo mais estável do carbono por ter seis prótons e seis nêutrons, enquanto o carbono-14 é o isótopo menos estável por ter seis prótons e oito nêutrons”, explica.
O físico conta também que as reações nucleares se tratam de interações entre núcleos atômicos e partículas — prótons, nêutrons, elétrons, pósitrons — que modificam os núcleos e alteram a quantidade de prótons e nêutrons ligados a um núcleo e consumindo ou liberando partículas. Assim como existem reações químicas exotérmicas, aquelas que produzem calores excedentes como a combustão, existem as reações nucleares que produzem calor que, então, é aproveitado nas usinas para aquecer a água e gerar o vapor.
As usinas nucleares que estão na ativa atualmente, segundo o profissional, empregam a reação de fissão nuclear em que um núcleo é quebrado (ou fissionado) e que forma dois ou mais núcleos atômicos distintos. Esse processo é sustentado pela ideia de reações em cadeia, quando alguns produtos de uma reação são responsáveis por dar início a outras reações. “A fissão de átomos mais pesados que o ferro é uma reação exotérmica e esse calor excedente é o que aquece (direta ou indiretamente) a água para produzir vapor”, complementa.
Entendendo melhor a função do urânio
Já que o urânio é o componente que faz tudo acontecer dentro de uma usina nuclear, e que ouvimos bastante o seu nome na série Chernobyl, pedimos para que o físico nos explicasse com detalhes qual é o papel do elemento dentro de uma usina.
A reação de fissão do urânio, segundo Carvalho, depende de um núcleo de urânio-235 (92 prótons e 143 elétrons) e um nêutron livre. “Quando o nêutron colide com o urânio, ele pode ser absorvido e o resultado é um núcleo de urânio-236. Esse núcleo é instável e rapidamente se quebra em dois: Um Bário-141 e um Kriptônio-92, mais três nêutrons livres, liberando energia na forma de calor. Então a fissão do urânio-235 consome um nêutron e produz três”, diz.
Cada um desses nêutrons desencadeia uma nova reação, que produz mais três nêutros, e assim por diante. Então, se a reação puder ser sustentada somente por esses nêutros, pode-se dizer que ela é crítica, enquanto se for necessária uma fonte externa de nêutros para sustentar a reação, é dito que ela é subcrítica.
Carvalho conta que o urânio encontrado na natureza é formado, essencialmente, por urânio-238 (99,3%) e 0,7% urânio-235. Portanto, nêutrons que são produzidos pela fissão do urânio-235 têm uma chance baixíssima de colidir com outro núcleo de U-235 e sustentar a reação em cadeia.
“É mais provável que colida com um U-238 e seja absorvido, formando outros elementos radioativos, que têm sua utilidade no ciclo do combustível nuclear. O processo industrial para aumentar a concentração de U-235 é chamado de ‘enriquecimento’. Usinas como a de Angra utilizam urânio enriquecido com 3% de U-235 e 97% de U-238 em sua composição”, diz o físico.
Qual a função do grafite em uma usina nuclear?
Outro componente bastante citado na minissérie é o grafite. Em Chernobyl, entendemos que ele está na parte interna das usinas, mas qual é o seu papel? Carvalho explica que a fissão do U-235 produz três nêutros que saem com uma velocidade muito alta para que possa reagir com outros núcleros de U-235. Por isso, o grafite atua como um moderador nas usinas, desacelerando esses nêutrons para que eles possam interagir com os núcleos.
“Nêutrons nessa faixa de velocidades são chamados de ‘nêutrons térmicos’. Dependendo do projeto da usina, diferentes substâncias são usadas como moderadoras. Usinas de água pressurizada (PWR — Pressurized Water Reactor), como as de Angra, de água fervente (BWR — Boiling Water Reactor), como os de Fukushima, utilizam a própria água como moderador (e como refrigerante, o fluido que vai tirar o calor do urânio e levar para aquecer a água). Reatores do tipo RBMK (Reaktor Bolshoy Moshchnosty Kanalnyy ou Reator Canalizado de Alta Potência), como o de Chernobyl, utilizam o grafite como moderador e água como refrigerante e fluido de trabalho”, explica.
Usinas tipo PWR e BWR não utilizam o grafite, e apenas 30 dos reatores nucleares em operação no mundo todo fazem o uso do mineral.
Usinas nucleares no Brasil
Carvalho conta que, hoje, existem duas usinas em nosso país. “O Brasil conta com duas usinas nucleares operacionais: Angra-1 e Angra-2. Uma terceira está sendo construída no mesmo complexo e deve inciar as operações na próxima década. As duas usinas em operação produzem 1800 MW de energia, o equivalente a quase três (das 20) turbinas da hidrelétrica de Itaipu”, diz.
Radiação
O grande problema do incidente em Chernobyl não foi apenas a usina ter explodido. A radiação que está dentro das usinas nucleares é extremamente nociva, podendo até mesmo ser fatal quando em grande quantidade. As usinas são projetadas para que a reação nuclear nunca saia de seu circuito, que fica em prédios de contenção que impedem que a água aquecida pela reação nuclear entre em contato com o ambiente.
Alguns projetos de usinas, como as existentes no Brasil, mantém a água aquecida em estado líquido através da pressurização, no que é chamado de ciclo primário. “A água do ciclo primário troca calor com a água do circuito secundário, que efetivamente vira vapor e gira as turbinas do gerador. Essa água é livre de contaminação radioativa e é monitorada por sistemas de segurança. Utiliza-se água de uma fonte externa (mar, lago, rio) para resfriar esse vapor no condensador”, diz o físico.
Materiais que possam estar contaminados com material radioativo, como roupas de proteção ou ferramentas, são armazenadas com bastante cuidado em ambiente controlado e monitorado. Quando em operação normal, usinas nucleares não emitem radiação para o ambiente.
Em pequenos acidentes, é mais provável que o refrigerante da usina, geralmente água, acabe escapando, e por estar em contato com o combustível, possa conter traços de materiais presentes no interior do reator ou de produtos de fissão, como Estrôncio-90, Césio-137, Samário-151 e Iodo-131.
“Esses materiais são radioativos e sofrem decaimento, emitindo radiação gama e beta e produzindo outros isótopos. A radiação gama é eletromagnética, essencialmente luz, mas mais energética que raios-X. A radiação beta é um elétron livre”, conta.
O professor explica que tanto a radiação gama quanto beta são ionizantes, ou seja, capazes de alterar a carga elétrica das moléculas. Essa mudança pode provocar reações químicas em substâncias que, de outra maneira, seriam estáveis.
“Caso essas reações ocorram no DNA, é possível desenvolver câncer, por exemplo. Alterações no DNA dos gametas (óvulos e espermatozoides) podem levar a aborto espontâneo ou malformações fetais. Reações em outras moléculas podem levar a morte celular ou rompimento da membrana celular, causando efeitos como queimaduras”, explica o físico com casos que vimos na minissérie da HBO.
O caso mais grave que pode acontecer em uma usina nuclear é o derretimento do núcleo da usina, também conhecido como meltdown. Em Chernobyl, isso aconteceu quando a energia produzida pelo núcleo aumentou muito rapidamente, e em Fukushima o problema foi a perda de refrigerante no núcleo do reator. Aquecido demais, o núcleo da usina derrete os demais metais presentes no reator.
“Esse metal líquido radioativo (chamado de corium) não costuma sustentar reação em cadeia, pois o moderador não está presente. Por isso, tipicamente o calor do corium vem do decaimento radioativo natural. As usinas são projetadas de forma que o reator fica num edifício de contenção e há estruturas redundantes para conter o corium caso haja um derretimento”, complementa.
Nova tecnologia de reator de energia
Startups e empreendedores inovadores estão desenvolvendo um novo tipo de reator, projetado para alcançar as áreas mais remotas de desenvolvimento. Mais eficiente, esses novos reatores devem ser capazes de reduzir a produção de resíduos, ou até mesmo reciclar e transformar a água do mar em potável.
Também estão em desenvolvimento pequenos reatores nucleares conhecidos como SMR, que não usam nem água para o resfriamento, mas sim materiais como metal líquido, sal fundido ou hélio, responsáveis por transferir calor para um suprimento separado de água e, então, produzir vapor.
Os SMR fazem parte de uma categoria avançada de reatores, que produzem 300 megawatts ou menos de eletricidade e que vão custar menos na construção. Esses reatores serão construídos em fábricas e enviados para onde sejam necessários, ajudando a suprir áreas remotas ou nações que ainda estejam em desenvolvimento com energia livre de carbono.
A iniciativa também pode aumentar a produção de energia para conseguir atender à demanda de eletricidade atual, criando parcerias para o apoio à fontes de energia renováveis e intermitentes.
Reatores mais avançados conseguem operar com temperaturas mais altas ou pressões mais baixas que os tradicionais, além de contarem como outras aplicações, como a dessalinização da água e produção de hidrogênio. Outros reatores ainda devem ser mais eficientes em consumo de combustível, produzindo menos resíduos ou prolongando os ciclos de combustível sem precisar de abastecimento por até 20 anos.
Hoje, a IAEA (Agência Internacional de Energia Atômica) é responsável por publicar, rever e inspecionar o cumprimento de protocolos de segurança no uso pacífico de energia nuclear, cuidando de fatores humanos e organizacionais, bem como gestão e protocolos técnicos, para garantir que acidentes não aconteçam mais.
Para entender mais sobre o assunto, Elton Carvalho é um dos membros dos podcasts Dragões de Garagem e Rock com Ciência, e no episódio 159 do Dragões, o profissional debate sobre o tema ao lado de André Thieme, Marina Mendonça e Matheus Cortezi.
Com informações: NEI, Duke Energy
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Fonte: Canaltech