Filmes de animação tendem a ser julgados inconscientemente como produções destinadas somente ao público infantil. Por mais que a técnica já tenha anos de idade, ainda é comum relacionar desenhos com tramas para crianças, principalmente quando a produção é de estúdios famosos como o Walt Disney Animation Studios ou a Pixar.
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Em Luca, a impressão não é diferente quando se assiste sob uma ótica mais fria e dura. No entanto, o diretor convida o espectador para uma viagem particular ao desmembrar características da vida em uma história abstrata de impacto praticamente universal. Não é equivocado dizer que o filme é o mais discrepante de toda a prateleira de produções da Pixar, que agora possui 24 obras. O projeto é a estreia de Enrico Casarosa comandando um longa após dirigir apenas o curta La Luna, em 2011. Porém, com uma enorme bagagem nos departamentos de arte e tempo de casa o suficiente, o cineasta carrega em Luca inúmeras referências do acervo do estúdio sem deixá-lo de torná-lo uma história profundamente íntima e quase particular.
Atenção! Esse texto pode conter spoilers.
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Por mais difícil que a tarefa possa ser, Casarosa assume o desafio de transformar um relato altamente pessoal numa obra cujo público volta para os próprios pensamentos, memórias e emoções. Para isso, ele escolhe uma linguagem metafórica e de ressignificar palavras e conceitos de conhecimento comum, com o impacto residual na mente de cada espectador seja realizado de uma forma bem diferente da multi-interpretação que o cinema usualmente oferece. Fugindo de uma abordagem cabeçuda e pensando objetivamente numa reflexão universal, o diretor decide brincar com palavras, sobretudo “transformação”, apresentada logo no início do filme: dando características místicas ao protagonista, Luca é uma espécie de monstro marinho que assume a forma humana ao sair da água, assim como volta a ter escamas quando sua pele é molhada.
É logo nesses primeiros minutos que o diretor amplia as definições de palavras em seu sentido figurativo. Por mais que se trate de um filme aparentemente infantil com o objetivo único e exclusivo de entreter, o ato vai muito além de ter a aparência humana ao emergir para a superfície. A transformação aqui é tratada como uma quebra de barreiras do inconsciente e pensada em mínimos detalhes para acontecer nos momentos certos; e é isso o que torna tão interessante para o protagonista romper esse paradigma quando conhece Alberto — em que Luca passa a escrever sua história do zero.
Tratados como duas peças de quebra-cabeça que se encaixam, Luca (Jacob Tremblay) e Alberto (Jack Dylan Grazer, que brilha na voz original) completam um ao outro com, justamente, tudo que sobra em si: enquanto Luca possui uma educação rigorosa dos pais, Alberto lida com a ausência dos seus; enquanto Alberto se denomina especialista do mundo humano, Luca desconhece tudo o que lhe é falado. Esse contraste vai muito além para Casarosa provar um ponto altamente pessoal na história, que é como as amizades de infância são capazes de moldar o caráter humano para o resto da vida.
Luca e Alberto são facilmente o mais novo par de amigos com um relacionamento tão genuíno e belo quanto o de Woody e Buzz, de Toy Story. Essa linguagem de opostos mesclada às metáforas da narrativa se estende durante todo o filme de um modo a mostrar que a presença de um agrega na vida do outro, com Luca trazendo sua inocência e puro coração à malícia de Alberto, enquanto este último o desafia a superar seus medos utilizando uma espécie de mantra carpe diem, repetido diversas vezes no filme como Silenzio, Bruno.
Por mais que haja o objetivo de explorar o valor das amizades (sobretudo as de infância), Casarosa mantém os pés no chão para aproximar Luca de uma ocasião real sem deixar de ressignificar a ideia de transformação mostrada logo em seu início. Sempre que os amigos assumem a forma aquática ou humana, sobem um diferente estágio da amizade e de laços interpessoais. Aqui o diretor se aprofunda nos impactos externos dentro de uma jornada particular. A relação de Luca e Alberto estremece a medida que a história aproxima-se de seu clímax, e assim como acontece em muitas situações na vida real, chega a um momento em que é necessário partir os caminhos que já não estão mais em sintonia.
E é numa história tão verossímil que Casarosa opta por brincar com o expressionismo visual e uma paleta vibrante de cores que transborda os quatro cantos da tela. O filme abre espaço para um show à parte realizado pela direção de arte de Portorosso, que não aparece até o início do segundo ato, mas que leva a assinatura de Josh Holtsclaw, de Toy Story 4 e Carros 3. Esteticamente falando, o longa funciona por si só como uma experiência turística imersiva — principalmente em tempos de isolamento social. O cuidado com a atmosfera e cenário foi pensado nos mínimos detalhes para dar extensão à ótica inocente de Luca diante da cidade ao mesmo tempo em que mergulha na cultura local, seja na captação de vozes de crianças italianas para o som de fundo das cenas, a arquitetura e gastronomia local retirada de uma viagem de estudo pela produção e, por fim, as referências do cinema italiano de 1950 nítidas em tela, levantadas de filmes como A Estrada da Vida e A Princesa e o Plebeu.
Nesse cenário, Casarosa ainda opta por um embate sociocultural movido à inocência diante das situações aplicadas, sem abrir mão da ideia de ressignificados, dando mais sentidos a “comum” e “diferente”. Dispostos a correr uma maratona local para ganhar uma Vespa, Luca e Alberto saem em busca de se inserir em atividades humanas e rotineiras, mas não deixam de escapar comentários que denunciam seu local e valores de origem — como quando um amontoado de moedas parece ser “inútil” ou quando o jeito que seres humanos nadam é julgado “constrangedor” diante de dois monstros marinhos.
É entre tantas metáforas e ressignificados que Luca ainda abre margem para ampliar a ideia de solidão. Numa reflexão proposta desde o princípio da obra sobre os impactos das amizades de infância e como são capazes de moldar e agregar nossos valores, Casarosa ainda esclarece que geralmente a presença dos responsáveis por essas marcas em nossas vidas será efêmera. O diretor assina uma carta de agradecimento para não só seus amigos de infância, mas para todo e qualquer um que venha a contribuir para o crescimento pessoal de um ser vivo, seja “pulando de um penhasco ou mandando Bruno ficar em silêncio”, como diz Alberto ao melhor amigo nos minutos finais.
Não é equivocado dizer que Luca, nesse aspecto, conta a história de uma vida inteira (e de diferentes vidas) em uma hora e meia. Ainda brincando com sentidos figurativos e as incertezas da vida, o diretor reflete sobre amizades passageiras com um final aberto — e, nesse caso, nada melhor para simbolizar a mensagem de forma clara utilizando um trem, automóvel cujo movimento é sempre adiante.
Luca estreia nesta sexta-feira (18) no Disney+.
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Fonte: Canaltech