A chacina de Vigário Geral completa 25 anos nesta quarta-feira (29) com mais uma notícia triste para Iracilda Toledo, viúva do ferroviário Adalberto de Souza, uma das vítimas da tragédia. Agosto foi o último mês em que ela recebeu a pensão de três salários mínimos pelo assassinato do marido – a sentença que determinou o pagamento do benefícioprevê que a indenização seja paga pelo Estado até o aniversário de 65 anos de cada uma das vítimas.
A chacina foi uma das maiores ocorridas no Rio de Janeiro. De 51 acusados, só um continua preso, o ex-policial militar (PM) Sirlei Alves Teixeira. O caso chegou a ser julgado na Organização dos Estados Americanos (OEA), como crime contra os direitos humanos.
Na opinião de Iracilda, o prazo final de pagamento da pensão foi estipulado equivocadamente pela procuradoria. Ela disse que, nos anos 2000, o Estado reconheceu a culpabilidade e ofereceu uma pensão vitalícia para a família das vítimas.
“Eu fico muito triste, não pelo fato do dinheiro, mas pelo fato de acharem que a gente é bobo. ‘Ah, é pessoal de comunidade, não vai fazer nada’. E não é assim. Precisamos mostrar para o Estado que eles nos fizeram mal, e foi para vida toda, não é até os 65 anos deles”, afirmou a viúva, que preside a Associação dos Familiares das Vítimas da Chacina.
Iracilda chegou a procurar diversos órgãos buscando explicações. “Fui à Alerj [Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro], à Procuradoria Geral, ao arquivo morto da Procuradoria-Geral, onde ficam todos os processos, e não está. Eles falam para mim que a lei não existe. Então, estou aguardando para ver como vai ficar minha pensão neste mês. Provavelmente em setembro não deve vir mais o pagamento. Se não vier, eu vou botar na Justiça.”
De acordo com Iracilda, outras famílias já perderam a pensão, como a esposa de Joacir, dono de um bar onde sete pessoas foram assassinadas. “Ela perdeu a pensão há muitos anos. Hoje ela vive de quê? Vendendo sacolé [um tipo de picolé]. É muito chato uma senhora de 70 e poucos anos estar vendendo sacolé e doces na porta de casa porque perdeu a pensão que era para ser dada até o final da vida dela. Ninguém pediu para eles [PMs] tirarem a vida dos nossos maridos. Tiraram sabendo que estavam fazendo o mal. Então o Estado assinou a culpabilidade, o governo deu uma pensão vitalícia, e aí a Procuradoria do Estado corta a pensão?” questiona Iracilda.
A Agência Brasil pediu à Procuradoria-Geral do Estado esclarecimentos sobre o caso, mas, até a publicação desta reportagem, não obteve resposta.
Chacina
Os 25 anos da Chacina de Vigário Geral não são o bastante para que Iracilda esqueça o trauma. A viúva lembrou que o marido não costumava sair aos domingos, mas abriu uma exceção por causa de um jogo do Brasil pelas eliminatórias da Copa do Mundo de 1994. Ele foi morto no bar em frente a sua casa, com mais seis pessoas, enquanto comemoravam a vitória por 6 a 0 do time de brasileiro sobre a Bolívia.
Ela conta que Adalberto estava de serviço no domingo, dia em que quatro PMs foram executados na favela. “Aí eu chamei ele, que ia trabalhar, disse para ele levantar e avisei que lá fora tinha quatro policiais mortos. Quando saiu, ele disse: ‘minha filha, não fica na rua, que hoje vai ter represália aqui dentro’. E isso foi no dia em que ele morreu, dia 29 de agosto de 1993”, disse.
Segundo Iracilda, oito dos 21 mortos naquela noite eram da mesma família e estavam na mesma casa. “Eu estava em casa e, por incrível que pareça, os meliantes passaram pela minha porta e não viram meu portão aberto. Eles arrombaram as casas para matar. Inclusive, o senhor Gilberto, dona Jane, os cinco filhos e a nora morreram todos dormindo. Eles [policiais] entraram na casa e mataram. E era em frente ao bar.”
As outras seis pessoas executadas na chacina estavam na rua. Uns estavam chegando da igreja ou até mesmo saindo para o trabalho. No bar do Joacir, onde sete pessoas foram mortas, inclusive Adalberto, havia nove pessoas na hora do crime. Só dois sobreviveram, porque fingiram que estavam mortos. “Ficaram com sequelas graves e não receberam indenização. Eles têm só pensão. Por que não deram até hoje eu também não entendi”, revela a viúva.
Outras chacinas
Iracilda contou ter vivido tempos difíceis após a morte do marido, lembrando, inclusive, que chegou a ser ameaçada. “Eu tive que me mudar porque sofri represália. Eu era nora do presidente da Associação de Moradores de Vigário [Geral], e ele foi ameaçado. Então, eu, com filhos pequenos, fui embora para o interior.”
Mesmo com as dificuldades que enfrentou no passado e, hoje, com a tristeza que sente ao ver seus netos crescendo sem conhecer o avô, a viúva destaca os avanços que a Chacina de Vigário Geral trouxe para outras vítimas. “Você vê que nós tivemos um avanço porque a minha lei abrangeu as vítimas da Chacina da Candelária, que foi antes, Via Show, Borel, Morro da Coroa – todas as chacinas que foram comprovadas entraram na lei de 2000. Eu lutei a vida inteira não foi por vingança, foi por justiça para que outros não passassem pelo o que eu passei”, afirmou.
Foi também com a Chacina de Vigário Geral que policiais militares foram julgados pela primeira vez pela Justiça Comum. “Geralmente, eles eram julgados dentro da própria corporação. Hoje, não. Hoje eles sentam no banco dos réus, porque Vigário Geral correu atrás disso”, enfatizou Iracilda.