Talvez exista algum limite para brincar com um tema tão sério quanto o holocausto. Algo tão desumano pode não merecer um tratamento leve como aparentemente é feito em Jojo Rabbit. Quando A Vida é Bela (de Roberto Benigni, 1997) foi lançado, por exemplo, algumas críticas negativas ressaltaram o teor agradável que encobria os absurdos do exército alemão.
Benigni foi ousado com seu filme: encobriu os terrores para criar um universo infantil a partir de um pai dedicado. Mas ele não retirou os fatos. Estão todos ali, rondando os protagonistas como em um bom exemplo de terror: quando não é possível ver o monstro, somente sentir a sua presença – o desconhecido (na visão da criança) como motor do que há de mais terrível.
Décadas antes, em plena Segunda Guerra Mundial, Charles Chaplin criava a sua caricatura de Hitler com um clássico: O Grande Ditador (1940). O território, no caso, era mais propício e menos arenoso do que o de Benigni, afinal, o humor era praticamente todo em cima do próprio tirano, do homem, e não da situação. Ridicularizando Hitler, inclusive na antológica cena em que brinca com o globo terrestre como se este fosse uma bola, Chaplin não foi ousado como o italiano; ele foi cirúrgico. Porque o humor direto funciona sem precisar ser lido em mais camadas.
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Cuidado! A crítica pode conter spoilers!
Amadurecer dói…
Taika Waititi parte de uma premissa que parece unir Chaplin e Benigni, ridicularizando o ditador alemão a partir de um olhar infantil. O prólogo de Jojo Rabbit é fundamental na percepção do que está por vir; é o momento em que o pequeno Jojo (Roman Griffin Davis) é apresentado como alguém que busca se encaixar em seu mundo. De maneira rápida – e infelizmente superficial –, Waititi solidifica (mas nem tanto) a personagem de Griffin Davis, fazendo surgir, já a esse ponto, o amigo imaginário daquela criança: o Hitler (interpretado pelo próprio Waititi).
A partir de então, o diretor neozelandês – que também escreveu o roteiro (adaptado do livro de Christine Leunens) – começa a traçar situações clichês que, pelo olhar de uma criança, conseguem passar com muita facilidade. Aliás, Griffin Davis tem uma das atuações infantis mais bonitas dos últimos anos, estando presente em praticamente todas as cenas do filme e sempre com muito carisma – por mais que seja um pequeno nazista.
E aí está um dos méritos de Jojo Rabbit, conseguir com facilidade que o espectador se apegue ao protagonista e entenda que as crenças que ele tem são criações de sua inventiva mente infantil. Ao compreender que o discernimento de uma criança está sob moldes sociais e que a diferença entre certo e errado é mínima quando se está em formação, Waititi (a partir de Leunens) solidifica a figura de Jojo ao mesmo tempo em que faz evaporar lentamente a do amigável Hitler. Amadurecer – e de forma dolorosa – acaba por forçar a percepção de mundo do pequeno que, em um ímpeto contra a infância programada que teve, chuta seu Führer pela janela afora: para longe do seu domínio e entregue ao mundo.
A beleza de um filme repartido
O filme ainda conta com cenas que devem ecoar na memória pela delicadeza com que são construídas – demonstrações do poder de um comediante ao protagonizar ou, no caso, reger situações dramáticas. Enquanto Waititi faz uma rima lindíssima e, ao mesmo tempo, triste entre o amor platônico e o corte seco do maior amor real – com um simbólico borboletas no estômago seguido, mais à frente, por uma solitária borboleta azul, Scarlett Johansson (Rosie, a mãe de Jojo) protagoniza uma das cenas mais bonitas de um filme produzido em 2019: encarnando um diálogo entre sua personagem (Rosie) e o pai do menino, Johansson é de uma delicadeza enorme. Waititi entende esse momento e parece deixar o ritmo por conta da atriz, que não somente faz seu filho em cena acreditar no diálogo, mas consegue fazer com que o público compre a ideia e, se não acreditar, ao menos se sentir criança novamente.
Por outro lado, Jojo Rabbit tem uma marca um tanto quanto aberta: se a um instante percebe-se o todo pelo olhar da criança, em outro a posição pode ser a de uma terceira pessoa (como público de fato). Essa falta de uma unidade estrutural pode, de algum modo, corromper a percepção da totalidade e fazer com que o Hitler de Jojo seja, somente, uma caricatura de mau gosto. Essa mesma falta de coesão faz com que algumas cenas (como as citadas) estejam muito acima do resultado do filme em si – desmembrando o filme enquanto obra, dividindo-o em pequenos conceitos.
Como a vida e a morte
Mesmo assim, há uma aura quase hipnótica no trabalho de Waititi. Seja pela coragem em fazer comédia com Hitler, seja por taxar qualquer vislumbre pró-nazista de delírio que ataca mentes sem discernimento e moldadas por uma sociedade que não pode ser libertada sem educação – e, sem contar com Rosie, o maior educador em Jojo Rabbit é o Capitão Klenzendorf (Sam Rockwell), um homem que, ao menos, faz o certo por linhas tortas.
A partir de uma criança, Jojo Rabbit traz a história daqueles que mantêm a mente sob comando, daqueles que podem até viver livres e sem jaulas aparentes, mas que são integrantes do exército do caos – que é formado por um conjunto de muitas mentes aprisionadas. Porque “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor.”
Entre a ironia certeira de Chaplin e a quase-fantasia de Benigni, agora está esse trabalho irregular de Waititi, que revisita o passado e move o cinema dentro da história do mundo, que tem se mostrado cíclica… como a vida e a morte.
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Fonte: Canaltech