No último dia 28 de abril, a 11ª Câmara do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 15ª Região (Campinas) negou uma homologação de acordo reconhecendo o vínculo empregatício de um motorista de aplicativo da Uber. O relator do acórdão, desembargador João Batista Martins César, não só negou o pedido de retirada do processo de pauta como deu provimento ao pedido inicial do trabalhador, reconhecendo o vínculo de emprego com a empresa no período de 10/8/2017 a 17/7/2018 e de 26/7/2019 a 24/9/2019.
Tal fato já seria digno de nota, já que o Uber vem vencendo na Justiça trabalhista a maioria dos processos movidos por motoristas que pedem o pagamento de direitos trabalhistas à empresa. No entanto, ela chamou a atenção por outra razão: o uso da Jurimetria – ferramenta que facilita a vida de escritórios de advocacia, dos departamentos jurídicos de empresas e é responsável por uma considerável parte da receita das lawtechs – foi motivador da decisão do desembargador Martins César em negar a homologação do acordo.
Mas o que é a Jurimetria?
Em termos um pouco mais técnicos, a Jurimetria é a disciplina resultante da aplicação de modelos estatísticos na compreensão dos processos, das decisões judiciais e dos fatos jurídicos. É o método que estabelece condições de análises descritivas e diagnósticas, além de evidenciar dinâmicas sobre a causa raiz de situações identificadas como relevantes.
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Agora em termos um pouco mais simples: a Jurimetria é, basicamente, a análise das decisões dos tribunais ao seu favor (ou contrárias) a partir do uso de um software de analytics. Esse programa, a partir, por exemplo, do uso de palavras-chave e termos relacionados a um caso, faz uma varredura no banco de dados público do Judiciário brasileiro (ou no banco de dados das empresas, caso ele seja usado por departamentos jurídicos) para detectar tendências de decisões de juízes e desembargadores, mostrando os resultados de forma visual e estruturada.
Logo, a defesa da Uber, por exemplo, pode usar uma plataforma do gênero para fazer um mapeamento de todas as decisões dos tribunais brasileiros e nas Câmaras a partir de um determinado caso. E, ao analisar os dados e perceber que há riscos de perder o processo, rapidamente, a empresa propõe um acordo com o reclamante. Caso contrário, se as chances de derrota são pequenas, a defesa deixa o processo ser julgado.
O uso da Jurimetria é permitido, principalmente, em situações onde são permitidas consultas de decisões públicas. Portanto, há liberdade na checagem de jurisprudências como um método estratégico para ganhar uma ação judicial.
Porém, o desembargador Martins César não pensa da mesma forma. No entendimento do relator, o fato de a empresa [Uber] tentar um acordo às vésperas da sessão de julgamento configurou uma estratégia para conseguir “vantagem desproporcional”, com base em uma “contundente fraude trabalhista extremamente lucrativa, que envolve uma multidão de trabalhadores e é propositadamente camuflada pela aparente uniformidade jurisprudencial, que disfarça a existência de dissidência de entendimento quanto à matéria, aparentando que a jurisprudência se unifica no sentido de admitir, a priori, que os fatos se configuram de modo uniforme em todos os processos (Jurimetria)”.
O colegiado afirmou ainda que o direito ao contraditório assegura às partes “paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório”. Nesse sentido, porém, no caso se verifica “a incompatibilidade entre a observância do princípio da cooperação e o abuso do direito processual caracterizado pela adoção dessa estratégia de manipulação da jurisprudência”, afirmou.
De acordo com o relator, “não se está a desestimular ou desmerecer os meios consensuais de resolução dos conflitos, cuja adoção é estimulada pelo Código de Processo Civil (CPC)” e que se revela como “mecanismo capaz de produzir pacificação social de forma célere e eficaz, cuja adoção é incentivada pelo Poder Judiciário, que tem investido na mediação e na conciliação”. No caso, entretanto, “é indispensável impedir o abuso de direito e a violação do princípio da paridade de armas (art. 7º do CC)”, concluiu. Leia a decisão na íntegra acessando o site do TRT nesse link.
Em outras palavras, o desembargador julgou que o uso da Jurimetria configura uma disputa desigual entre o reclamante e o processado. O problema é que esse caso abre um precedente perigoso, que pode inibir o uso de novas tecnologias no meio jurídico brasileiro.
Culpando a ferramenta
Em entrevista ao Canaltech, Thiago do Val, head de inovação, tecnologia e compliance da Lira Advogados, afirmou que análise da jurisprudência não é algo novo e que já vem sendo praticada há décadas. Com isso, a Jurimetria apenas ajuda a compreender as tendências e os posicionamentos judiciais através dos dados disponíveis nos tribunais:
“Antigamente, para consultamos as decisões, usávamos livros como a ‘Revista dos Tribunais’, com um acumulado de decisões judiciais. E no final do ano era publicado um índice, onde conseguíamos buscar os temas por páginas, algo totalmente analógico. A Jurimetria apenas digitalizou esse processo”, explicou o advogado. “Com a evolução da Tecnologia, foram surgindo as startups focadas nessas análises de dados e que deram origem as lawtechs que passaram a oferecer a Jurimetria”.
Thiago do Val explica que o que chamou a atenção neste processo trabalhista contra a Uber – e que já havia sido favorável à empresa em primeira instância – é que desembargador alegou que o uso da Jurimetria configurava uma fraude, dizendo que a Uber vinha fazendo acordos trabalhistas de forma estratégica.
“No entendimento do desembargador, onde a Uber estava conseguindo decisões favoráveis, ela não fazia acordos. Já nas regiões em que ela vinha sendo derrotada, ela faz o acordo antes do tribunal julgar, para que não haja uma jurisprudência contra a empresa, gerando uma falsa sensação de que não existem decisões contrárias contra a Uber”.
Mas por que impedir o uso da Jurimetria pode ameaçar a inovação no Judiciário brasileiro?
Primeiro, Thiago do Val explica que quando um magistrado usa essa linha de raciocínio, gera uma grande instabilidade para todos os envolvidos.
“Primeiro, uma insegurança jurídica, porque analisar jurisprudência e tomar decisões com base nesses dados é algo que sempre existiu. Então, se eu aplicar hoje um procedimento de fazer acordos em regiões onde eu tenho um risco grande de ser derrotado [usando a Jurimetria], corro o risco de não ser aceite pelo juiz, porque estou formando a posição da jurisprudência? É uma insegurança jurídica muito grande, porque você desencoraja a conciliação, que é algo amplamente incentivado, inclusive, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)”.
Para o advogado, o segundo impacto dessa decisão é de ordem tecnológica, já que ela vai contra a inovação e contra as novas tecnologias desenvolvidas, principalmente, pelas startups do setor.
“A Jurimetria está mudando o setor jurídico. Ela me traz um racional muito mais rápido e preciso para a tomada de decisão. Mas quando um magistrado vai contra isso, ele impacta não apenas a inovação, mas também os investimentos no setor. Os investidores terão segurança de colocar dinheiro em startups que fazem Jurimetria, que hoje é uma das principais soluções – e geradora de receitas – da maioria das lawtechs e legaltechs? Por que investir em algo que pode ser considerado uma fraude? O impacto econômico pode ser gigantesco”
Por fim, o terceiro impacto com atinge diretamente o reclamante em um processo e a possibilidade de um acordo. Segundo Thiago do Val, considerar a Jurimetria como fraude pode impedir que o advogado use dados relevantes adquiridos a partir desta prática para aconselhar o seu cliente a ir em frente ou não com uma ação legal.
“Um advogado com acesso a Jurimetria permite que ele aconselhe seu cliente sobre o andamento de um processo. Ele pode, por exemplo, verificar se na região onde a ação legal está ocorrendo, o reclamante tem maiores ou menores chances de vitória, baseado no histórico de decisões. Dessa forma, ele pode aconselhar o cliente a manter o processo ou tentar um acordo. A Jurimetria entrega essas informações de forma ágil e bem estruturada para uma melhor tomada de decisões.
Nesse caso do Uber, o motorista já tinha perdido em primeira instância e, a partir do acordo, ele teve uma chance de sair com uma indenização. Mas foi impedido pelo desembargador, que anulou a homologação e voltará a julgar o caso. Ou seja, dependendo da próxima decisão, ele pode sair sem nada, mesmo tendo concordado com a conciliação anterior”.
Considerar a Jurimetria como fraude pode se tornar uma tendência no meio jurídico?
Segundo Thiago do Val, ainda que ao entendimento do desembargador João Batista Martins César possa vir a ser um caso isolado, um alerta é ativado no setor quando ocorre uma decisão muito diferenciada no meio judicial.
“[A decisão do desembargador] pode ser um caso isolado, mas a Jurimetria começou a ganhar corpo agora. Então, quando você começa a ganhar escala, mas percebe que está havendo decisões estratégicas em cima da Jurimetria, é preciso acompanhar de perto para ver se o Judiciário vai aceitar essa prática, já que a tendência é que seu uso crescerá cada vez mais nos escritórios de advocacia e departamentos jurídicos. O Judiciário vai aceitar isso e perceber que isso faz parte dos novos processos?”
O advogado menciona inclusive que o próprio Judiciário já usa a Jurimetria:
“O próprio CNJ toma decisões e analisa esses dados jurídicos. Por exemplo, nas campanhas de conciliação promovidas por eles, eles olham quantos processos existem, quantos foram feitos acordos e quanto isso reflete economicamente para o próprio tribunal, já que, com a redução de processos, você diminui o custo da máquina pública.
O CNJ tem incentivado o uso dessas ferramentas de analytics e até a centralização das informações para facilitar o acesso entre os próprios tribunais, para que eles analisem o aumento (ou diminuição) de demanda de determinadas classes de processos e se preparem. E quando uma decisão considera essa prática de análise de dados como uma fraude, isso acende um alerta. Se for uma decisão isolada ótimo. Caso contrário, abre-se um precedente e é acessa uma luz vermelha de preocupação, que pode impactar a inovação no Judiciário”.
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Fonte: Canaltech